sábado, 27 de setembro de 2008

Entrevista com Poerner

Na semana passada, o escritor e jornalista Arthur Poerner [foto] deu uma palestra sobre os 40 anos de 1968 na Universidade Católica de Salvador, num evento promovido pela União Nacional dos Estudantes [UNE]. Poerner escreveu em 68 o livro O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros, que até hoje é referência na pesquisa sobre a participação política estudantil. A ditadura já havia então suspendido os seus direitos políticos por dez anos e ele foi obrigado a sair do Brasil e se exilar na Alemanha. Em entrevista para o repórter Ronney Argolo, o escritor conta o que pensa da UNE, da política e dos jovens.


A Tarde – Qual a luta do movimento estudantil hoje?


Arthur Poerner – O inimigo principal é o neoliberalismo, que, nos anos 60, ainda não existia na versão atual de irrestrita liberdade do mercado. A gente lutava contra a ditadura e pelo socialismo. Nos inspiravam revoluções populares como a cubana, a vietnamita e a chinesa; queríamos trazê-las para o Brasil. Pretendíamos não apenas derrubar a ditadura, mas, também, mudar o mundo. Éramos idealistas e ousados. O inimigo da nossa geração usava farda; o desta é virtual. Pode ser, por exemplo um banqueiro que rouba o país e, depois, conta com a presteza do Judiciário em sua defesa. Na nossa época, muito menos gente chegava a concluir o curso superior, o que garantia emprego a quase todos que obtivessem o diploma. Hoje, com o número bem maior de graduados, a concorrência no mercado de trabalho também disparou. E os estudantes têm que lutar pela melhoria da qualidade dos cursos e por uma política oficial de emprego.


AT – Para lutar contra o inimigo fardado, os estudantes dos anos 60 tinham ícones como Gandhi, Martin Luther King, Che Guevara. Em quem a juventude se inspira hoje?

AP – Um dos ícones atuais é Nelson Mandela, mas os antigos ainda se mantém. Não temos, no momento, grandes estadistas, nem de esquerda nem de direita. De Gaulle, por exemplo, era um presidente de direita, mas um estadista. É um absurdo patético que um país como os Estados Unidos esteja nas mãos de um boçal como o Bush.


AT – O que a falta de democracia nos ensinou?

AP – Que ela é o valor mais essencial em nossas vidas. Eu sempre falo dos bens de que só tomamos conhecimento quando nos faltam, como as mães. Quando elas estão por perto, para organizar nossas vidas, arrumar as coisas, nos dar atenção, às vezes nem as percebemos. Só depois que as perdemos é que sentimos como eram importantes. O mesmo ocorre com a democracia. Hoje, é normal os estudantes, como os demais setores da sociedade, protestarem, fazerem ouvir os seus anseios e reivindicações. Mas, nos tempos da ditadura, tive os meus direitos políticos suspensos, fui preso e tive que me exilar por pretender exercer o direito à liberdade de opinião e expressão.


AT – Como o senhor enxerga a luta do movimento estudantil no Brasil?

AP – Quando escrevi meu livro, tentei me opor à idéia de que estudante não devia se envolver em política. Eu era universitário, na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro. Pesquisando sobre a participação política estudantil, achei registros muito antigos. O mais velho deles, de 1710, quando corsários franceses invadiram o Rio e os estudantes seminaristas - porque ainda não havia universidade nem faculdades no país - resistiram ao ataque e prenderam o chefe dos invasores, Jean-François Duclerc. Assim como no Rio, encontrei histórias semelhantes em outros estados. Os estudantes da Faculdade de Medicina da Bahia, por exemplo, juntavam dinheiro para alforriar escravos. A diferença é que eram manifestações dispersas, transitórias e regionais. Somente a partir de 1937, com a fundação da União Nacional dos Estudantes [UNE], foram unificadas e se tornaram permanentes e nacionais.


AT – A UNE representa para os estudantes de hoje o mesmo que representava em 60?

AP – Tem o mesmo significado. A UNE tem mais de 70 anos e já participou de muitos movimentos históricos. A diferença é que hoje ela não é hegemônica. Na época do AI- 5, em 68, os sindicatos urbanos estavam sob intervenção, o incipiente sindicalismo rural fora esmagado no nascedouro e as manifestações populares eram coibidas. Por isto, a UNE centralizava a resistência. Agora, a realidade mudou, vivemos uma fase de construção e solidificação da democracia. Existem muito mais organizações sociais, a exemplo da Central Única dos Trabalhadores [CUT] e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra [MST]. Participar de movimento estudantil deixou de ser um risco, porque o nosso governo é aberto a isso, aceita e estimula o diálogo. Não é mais preciso engrossar. Os tempos são outros e as lutas também. A UNE, por exemplo, se bate por mais verbas e vagas para a universidade pública.


AT – O Reuni, programa do governo que propõe essas mudanças, tem recebido muitas críticas. O senhor é a favor dele?

AP – Sim, sou a favor da reestruturação, como vem sendo feita. Às vezes, por serem imobilistas ou por encararem qualquer inovação com receio pessimista, as pessoas se precipitam na rejeição.


AT – E quanto aos movimentos estudantis locais, não ligados a UNE ou que discordam dela?

AP – Todos são importantes, mas a UNE engloba tudo. Participei, ano passado, do Congresso da UNE em Brasília, com a presença da juventude de vários partidos, todos opinando contra ou a favor, democraticamente, como nos anos 60.


AT – O senhor não acha os jovens de hoje muito individualistas para lutar por causas coletivas?

AP – Sim, é um fenômeno mundial. Na Alemanha, por exemplo, há muito que não existe cola nas provas escolares. Mas do que ética, a motivação é a concorrência exacerbada pelo sistema: desde cedo, os estudantes vêem os colegas como concorrentes. Mercantiliza-se tudo, inclusive as pessoas, o que fomenta o individualismo em todo o mundo ocidental. Para isto, contribui o talvez único aspecto negativo da internet, que faz muitas pessoas se isolarem ainda mais.


AT – O Brasil segue o mesmo caminho da Alemanha?

AP – O Brasil tem capitalismo, mas tem buscado um caminho próprio, não neoliberal. O presidente Lula vem promovendo melhoria na distribuição da renda, o que demonstra que a esquerda é parte do poder, com muitas das idéias que nos embalavam nos anos 60.


AT – Os estudantes de hoje são capazes de superar o individualismo?

AP – Sim, ainda temos muito o que realizar como nação e o sucesso dos esforços vai depender do trabalho grupal e comunitário . Temos que combater em muitas frentes: pelo resgate da secular dívida social, contra o desmatamento da Amazônia, contra a situação da saúde pública, contra a corrupção, a impunidade, a lentidão da Justiça, o cartorialismo, o HIV, pela democracia em todos os níveis e setores básicos do nosso povo. Acho que a juventude sempre soube e saberá se unir nos momentos decisivos da nacionalidade. Os congressos da UNE continuam concorridos. E eu, particularmente, encontro público interessado nas palestras pelo país afora. Além do mais, a mesma internet que, em certos casos, favorece o isolamento e o individualismo, é nossa poderosa aliada na luta fundamental pela democratização da informação e pela mobilização em prol das grandes causas do nosso povo. Tudo depende da consciência e, nesse sentido, a internet é como a pólvora inventada pelos chineses: pode ser destrutiva ou muito útil para a humanidade.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A carta do anistiado Poerner que O Globo deixou de publicar

ARTHUR POERNER

Os julgamentos de processos de anistia de jornalistas realizados no Rio ensejaram um noticiário crítico e pejorativo de O Globo, que, com chamada na primeira página, dois dias seguidos, classificou as indenizações de "bolsa-ditadura", como se os requerentes estivessem usufruindo algo imoral e indevido.

O tom do noticiário, repelido com veemência por Ziraldo, exposto à execração pública pelo jornal, motivou dezenas de cartas de leitores, todos indignados com a suposta benemerência concedida aos anistiados. O Globo publicou, porém, apenas as cartas afinadas com a linha do seu noticiário e não registrou as que contestavam a impressão que o jornal procurou incutir na opinião pública.

Entre as cartas renegadas estava uma do jornalista Arthur José Poerner, transcrita a seguir. Membro do Conselho Deliberativo da ABI, Poerner teve os direitos políticos cassados quando tinha 26 anos, sofreu prisões e torturas e teve de se exilar na Alemanha, onde viveu dez anos.

Disse Poerner no texto rejeitado, enviado ao jornal às 18h41min do dia 14 de abril:

Não posso deixar de me solidarizar com Ziraldo e Jaguar, valorosos companheiros da resistência cultural n'O Pasquim ao obscurantismo ditatorial, diante do linchamento moral a que vêm sendo submetidos por alguns leitores, nesta seção.

Acionado pelos mesmos princípios éticos e democráticos que me fizeram repudiar o golpe militar desde que surpreendido por ele, com menos de dois anos de profissão, no Correio da Manhã. Por expressar esta rejeição, sempre e só no que escrevi, tornei-me, aos 26 anos, o caçula dos punidos com a suspensão dos direitos políticos por 10 anos; respondi a IPM; fui processado pelo Ministro Suplicy de Lacerda; tive que fugir pela janela - com Edmundo Muniz e o exímio editorialista Franklin de Oliveira - na noite em que forças policiais-militares invadiram o jornal, enquanto o Alberto Cury lia, em cadeia nacional, o AI-5; acabei preso na Redação, em 1970, demitido, após mais de três meses de prisão no inferno do Doi-Codi da Barão de Mesquita, e, ante a impossibilidade de sobreviver aqui, exilado, por quase 10 anos, na Alemanha.

Como contabilizar perdas e ganhos (que os houve, embora não bafejados pela ditadura, na qual alguns vêem, equivocadamente, a grande musa dos cartunistas)? Incluir na conta os infartos, o romance inspirado na tortura, o conhecimento de outros povos e idiomas? Recebo, mensalmente, R$ 1.549,57 de aposentadoria de anistiado, ora rebatizada de "bolsa-ditadura" (certamente, por quem não vivenciou os anos de chumbo ou optou por vivê-los por caminhos menos perigosos do que os da resistência).

Agora, o massacre do Jaguar e do Ziraldo levanta a questão: sou um "bolsista da ditadura"? Sei que agi movido pela minha consciência, sem visar a ganhos financeiros, que não foi "investimento", mas, também, que, em todos os países regidos pelo Direito, o Estado deve reparações pelos danos que ocasiona. A esses malefícios, que podem ser erros médicos ou balas perdidas em tempos democráticos, se agregam, nas ditaduras, desde prejuízos profissionais e materiais causados pela censura e pela repressão cultural a mortes e seqüelas físicas e mentais resultantes de tortura. Calcular o custo de uma carreira interrompida (a não ser nos casos de militares, diplomatas e outros funcionários públicos) é quase tão difícil quanto avaliar o preço de uma vida.

Mais uma razão para que o nosso Estado jamais volte a ceder a tentações ditatoriais. Gera custos de reparação. Que os leitores zelosos com o erário e com a destinação dos seus impostos também pensem nisso.

Publicado no Jornal da ABI – maio de 2008